terça-feira, 19 de agosto de 2008

Anominal

por Keissy Carvelli

Ah, Chico. Eu mal conheço teus versos, mas gosto e para gostar não é preciso conhecer muito. Basta olhar, ouvir um sorriso, sentir um abrigo.
Não faço cinema, Chico. Não faço nada de excepcional, e já não tenho muita vontade de ser a tal. Andei pensando e talvez eu nem acredite mais em Deus. "Desvairada", pensa você. Quem sabe eu seja isso mesmo e mais um pouco. Talvez eu seja bem menos, e talvez eu saiba que não sou nada daquilo.
Eu sou um desastre, Chico. Um desastre lúdico, confesso, com um resquício poético desses Pessoas que leio. Ainda assim um desastre.
Quando eu era criança, e brincava de pés descalços, e corria pela rua asfaltada e cheia de pedrinhas eu sofria de insônia, sofria mais, sonhava mais. Eu suava pelas tardes ensolaradas e nem a lua me impedia de manter os olhos abertos e correr por todos os cantos da minha imaginação.
Agora, Chico, eu durmo a qualquer hora e insônia eu desfaço com um cigarro. Nem insônia eu tenho mais, disse para dar uma idéia temporal de mudança. Eu nem sonho mais.
Quando a gente cresce, Poeta dos Acordes, a vida se acostuma. No primeiro soco a gente chora, sangra, reza, escreve, faz o diabo. No primeiro tombo a gente sofre, descabela, desfalece, perde os ponteiros, mas não entrega os pontos.
Na segunda luta a gente acorda mais cedo, ora, faz mandinga, promessa; trança os dedos, traça os olhos, estuda os trajetos, porém quando o mesmo soco vem de encontro à nossa sorte a gente cai. Depois levanta.
O brilho volta em uma semana. O soco volta em um mês. O terceiro, o quarto, o quinto dos infernos. Aí já não sangra, não chora, não bate. E quando a dor se acostuma com o peito, Chico, ela deixa de doer.
Francisco é seu nome, Chico? O meu pouco importa. Eu não o leio por aí. E aquilo que a gente não lê a memória não grava. Eu já me esqueci de mim, e meu nome tem tantas letras estranhas que eu prefiro não me chamar.
Posso ser Maria e João, e posso não ser. Já não importa, Chico. Eu já não sonho, e quando eu era criança eu dizia com a voz baixinha: "eu só vou morrer quando eu deixar de sonhar". Sempre achei inaceitável não sonhar. E por isso eu sonhava a todo instante, e minha mãe deixava, mas ela mesma não o fazia.
Agora eu entendo tudo. A gente cresce e começa a entender o que "criança não entende". Eu entendo que sorte é feito o nome: se nasceu Joana muito dificilmente se tornará Maria.
Ai, Chico. Se eu fizesse cinema, e não fosse de ninguém...Sabe Deus o que eu seria. Justo eu que nem sei mais de Deus.
Até mais, Chico. Eu vou dormir, porque para sonhar não basta fechar os olhos.



[ouvir: Ela faz cinema, Chico Buarque, talvez as frases se explicitem mais.]

Um comentário:

diana stivelberg disse...

ela faz cinema, ela faz cinema, ela é a tal

adoro essa musica :)
e adoro seus posts
e adoro o fato de eu me identificar com alguns deles

beijo