sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Entre eles

por Keissy Carvelli


- Porra, abre essa porta.
- Vai embora!
- Eu não vou a lugar nenhum, caralho!
- Agora você me diz isso? Só agora?


Ele respirou fundo como há dias não fazia. Em meses assim, com uma paixão assim ficava difícil deixar o ar entrar ou sair por completo.
Ela pode ouvir a respiração pesada e imaginou as rugas que se formavam na testa dele sem fechar os olhos, sem deixar de derrubar algumas lágrimas. Bateu de leve os punhos fechados na porta para, depois, ir caindo lentamente até repousar sobre o chão, de joelhos encostados contra o peito como via nos filmes. Imaginou que sentar assim, tão junto à porta, ao lado das palavras grosserias dele, com os joelhos apertados pelos braços curtos amenizaria alguma dor. Os filmes mentem, constatou.

- Você é tão ridículo nesse seu amor de merda, nessas tuas não palavras de merda!

Ele suspirou tomando fôlego para alguma resposta; colocou as mãos no bolso da calça quase larga, suja do dia inteiro e não disse palavra alguma, nem ao menos uma sílaba, nem expressão, nem palavrão.

- É esse seu silêncio imbecil que me entorpece de raiva. Vai, diz alguma coisa! Estúpido! Só duas frases com duas grosserias e acha que é o suficiente? Imbecil. Vai embora, saia por aí, saia de mim.


Ele ouvia o choro atropelando a voz dela e logo no ponto final virou as costas, sem suspiro nem fôlego e saiu.
Ela esperou ainda a beira da porta abraçando os joelhos sem secar as tantas lágrimas que caíam. Respirou fundo, mas não sentiu a respiração dele do outro lado. Levantou apoiando as mãos no chão; encostou mais uma vez os pulsos cerrados cor força na porta e ouviu mais um silêncio. Abriu a porta, como nos filmes, para encontrá-lo em choro também de punhos cerrados na porta. Imaginou que ao abrir a porta o silêncio seria rompido, ainda que com as grosserias dele. Os filmes mentem, constatou.



sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Idade média

por Keissy Carvelli


É estranha a sensação de sentir o tempo passar. Olhar as folhinhas caindo mentalmente não é tão constrangedor quanto ver o seu recente presente tornando-se um remoto passado, e então quase um pretérito passado.
Eu não estou lamentando qualquer ruga que possa ter surgido no meu rosto, essa preocupação ainda não é minha, e talvez nunca seja. Os cremes para os vinte, trinta anos estão aí e eu saberia conviver bem com a presença oleosa deles no armário do meu banheiro. São os momentos, as manias, os hábitos, os gostos.
Num desses domingos de calor não hesitei em gastar os poucos reais que me restavam num bar quase no centro da cidade. Quando você vive no sul do Brasil você passa a entender a virilidade do calor, você espera pelo calor como uma criança pelo Natal.
Foi num domingo de calor, então, como eu dizia. Alguns poucos cigarros, um bar não tão típico, com um aspecto de boteco, mas ainda bar, com cervejas valendo não como boteco. Bar. Música brasileira, copos ora cheios, ora vazios, algum samba no pé, voz já meio rouca de acompanhar a banda. Era Música Popular Brasileira, Maria Rita, Cazuza, Lobão, Tim Maia. Qualquer um na minha idade, ou com mais idade, pode entender.
Lá pelas tantas cervejas a cantora numa espécie de a capella deixa soar uma dessas canções da infância e que você, pura e simplesmente, leva pela adolescência, juventude e assim vai. Não que você tenha escutado dias a fio, cantado sob o chuveiro de olhos fechados. Você apenas conhece cada rima, cada verso como conhece as notas musicais sem nunca ter feito aula alguma. Você sabe. E eu sabia.
Prefiro omitir o título da canção. Não soa bem espalhar por aí certas músicas de toda uma vida. A cantora então deixou soar as primeiras palavras e me deixei acompanhar, como qualquer um na minha idade, ou mais, faria. Fui cantando, cantando como se a música fizesse parte de mim. De fato fazia.
Eu já soltava o diafragma no refrão quando observei uma amiga já de copo vazio me observando com um olhar de espanto, não um espanto horrorizado, um espanto, apenas. Não entendia em absoluto como eu, vestida de calça justa, tênis e t-shirt, como costumam dizer hoje, podia saber toda a letra daquela canção tão desconhecida.
Achei graça, afinei um pouco mais a voz, tomei ar e voltei para a repetição do refrão ainda com mais vontade. A menina de pouco menos de dezoito anos riu, ainda sem entender. Talvez continue não entendo, ou nem lembre mais passados tantos dias e tantos copos de cerveja. Não entendia como eu, vestida quase como ela, poderia saber uma música cuja existência ela desconhecia.
A música da infância, da adolescência e da vida inteira foi cantada por todos com vinte ou trinta anos. A menina de pouco menos de dezoito anos mal sabia que com seu espanto deixou a marca do tempo passando sob meus olhos, ainda sem rugas, que fique claro.