terça-feira, 29 de abril de 2008

Em punho e coração

por Keissy Carvelli

Amor, precisava te escrever algo de forma indireta. Piegas, eu sei, nunca neguei minha inclinação para as coisas bregas da vida. Idealizei uma carta, uma canção, uma poesia, mas de que forma vou escrever? O cansaço corrói meus ossos, e meus olhos são tomados por essas lágrimas vadias e miseráveis que jogam na minha cara a intensidade desse sentimento outrora doce, sutil e risonho que eu prefiro chamar de Amor, assim mesmo, em letra maiúscula, como seu nome grafado em segredo por entre essas linhas.
Tentei não me importar, fiz das minhas provocações uma vingança diária dos meus próprios desafetos; fiz dos meus enganos as minhas próprias desculpas; fiz dos meus sorriso os teus próprios versos, e dos teus sorrisos os meus melhores poemas. Fiz até canção que era pra te tocar em sol maior; criei recordações minuciosas da tua boca encostando a minha em tom calmo e preciso, e eu te encostando naquela parede , e te encostando em mim, que era pra ter seu cheiro um pouco mais perto. Era só pra te sentir em mim, e pra te sentir assim fiz dos meus dias as saudades dos nossos, e das minhas letras os sentidos mais intensos. Eu já te imaginava disposta sobre minha cama me ouvindo cantar, e eu, de olhos fechados, dedilhava aqueles clichês musicados, e por um segundo quase me envaidecia dos teus brilhos.
Eu já imaginava tantas cenas e roteiros, e sei, parece bobo, e de fato é, mas minhas ilusões desvairavam sobre seus olhos e sobre a remota possibilidade de tocar suas mãos por inteiro.
Eu não sei o que houve, onde tudo se perdeu, se um dia foi achado, se um dia eu fui a chave que te abria o coração. Há quem te escreva versos agora, amor. Há quem te tenha por perto, quem te veja de perto, e eu, nessa brincadeira de destino e distância, apenas não posso mais.
Há quem te abrace, quem te beije todas as manhãs de frio e sol ao centro, há quem te segure pela cintura, e não sou eu. Há um mundo, e uma só pessoa ao seu redor, que não eu.
Como vou te olhar assim, perdida entre aqueles outros beijos, aquelas outras frases tão piegas quanto as minhas? Como vou te amar em voz alta, escrever sobre os seus traços e a minha saudade em caixa alta se você, você, meu amor, não me quer para todos? Como posso te suprimir em mim em noite de lua cheia, em noite de céu estrelado se, ao nascer do dia, eu sou o brinquedo guardado a sete chaves no fundo do armário? Como vou seguir assim, sentindo por inteiro e tendo uma confortável metade?
Eu não sinto assim, em parcelas e distinções. Entenda, amor, eu gosto de você de olhos abertos e fechados. Eu estou falando, olha pra mim, eu amo você. Eu apenas não posso.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Mais uma dose

por Keissy Carvelli

A tarde era uma dessas em que o tédio invade o quarto sem deixar espaço para qualquer outro ofício, a não ser o frio, que escapava dos ventos lá fora entrando pela fresta da janela clara que insistia em refletir o sol sobre minha cama todas as manhãs.
Chovia, abria sol, chovia, assim como tudo em mim. Num instante eu sorria, noutro seguinte trancava meus lábios e franzia os olhos involuntariamente, ainda que minhas conversas superficiais demonstrassem o contrário.
Ela notou meus desapegos e então pediu que eu não ficasse triste, assim como quem pede um chiclete no fim da noite. Pediu para não ser o motivo da minha tristeza, como se pedisse para não ser motivo algum.
Não era tristeza dessas sólidas que botam nos olhos rios de lágrimas e nos lábios o sal amargo das desventuras. Ou era. Mas as lágrimas e os olhos não, esses não eram.
Era uma decepção, um cansaço latente quebrando-me os ossos, recolhendo-me a pele; era um desajuste cretino maltratando minhas estruturas. Mas não era ela o motivo. Não o principal.
Eu, tudo começava e terminava nesse pronome tão pessoal. Estava descontente comigo, com essas mãos de unhas vermelhas, com esse cabelo molhado do banho quente, com esses pés frios e pequenos. Não estava triste, porque estar triste comigo mesma era querer sentir de mais, e eu, sinceramente, não queria sentir.
Estava estupidamente desacreditada de mim, porque eu, nesse infame jeito de ser, não conseguia sequer deixa-la ir. Para qualquer lugar que fosse, para qualquer abraço que a quisesse, eu não a deixava ir. Eu não podia ir a lugar algum.
Estava em náuseas porque eu, nessa brincadeira de gostar, acabei gostando demais, e gostando mais daquele beijo do que da minha própria boca. E por gostar de mais eu não me deixava partir; por gostar de mais eu não gostava mais de mim.
Era como uma dose de conhaque, dez doses de um álcool qualquer misturados a um maço inteiro de cigarros, ou qualquer sinônimo mais barato e medíocre: você sabe do dia seguinte, conhece o gosto amargo de ressaca em olhos baixos, não suporta o odor estúpido das mãos, do cabelo, do ócio; você sabe, com todas as letras e gestos, que o sono cairá sobre o corpo, que a cabeça parecerá mais pesada que o céu, mas, ainda assim, num próximo final de noite, trará um copo para mais perto, acenderá o cigarro com a outra mão, e se embebedará por toda a madrugada. Porque o gole na boca, e o gosto nos lábios, são ainda mais sutis que o amargo da lua caindo. O toque esperado é ainda mais sentido e amado que as divisões odiadas.

domingo, 20 de abril de 2008

Cor-de-menina

por Keissy Carvelli

Pacote fechado, embrulho colorido com um laço vermelho logo em cima. Não havia cartão, mas não era preciso, o silêncio das poesias gritadas aos quatro cantos evidenciavam todo o conteúdo e teor daquela caixinha levada pra casa, às pressas, por passos curtos e contidos.
Um pequeno soldadinho de chumbo foi tirado com cautela por aquelas mãos pequenas e olhos que sorriem. Ele era de chumbo, porém levava em seu rosto um sorriso desses lindos, com dentes perfeitos tão bem alinhados. Ele sorria por ver aquele sorriso.
A menina foi arrumando com delicadeza cada dobra da roupinha azul, e depois o chapeuzinho, e os sapatinhos até se converter ao olhar contente daquele pequeno boneco e ceder-lhe um beijo. Ele não era apenas um bonequinho de chumbo.
Foram dias assim, de paixão, de toques sutis, de conversas que duravam horas e mais horas, e elogios, canções, superstições...Eram dois juntos em um só, como se a vida inteira tivessem procurado um ao outro. Ele não se sentia mais como um bonequinho de chumbo. Ela não o deixava sentir sequer por um único instante.
Numa noite dessas, em que trocavam sentimentos, o soldadinho foi posto no baú cor-de-rosa, longe da cama, num canto qualquer. Ele não desconhecia o motivo, no entanto preferiu não entender.
Na noite seguinte o baú não foi aberto, a escuridão se prolongou por algumas lágrimas que caiam sobre aquele ausente sorriso. Ele não era apenas um soldadinho de chumbo, ele sabia. Tinha voz, e cantava, e sorria. Suas mãos não eram nem tão grandes nem tão pequenas, combinavam com as dela. Não, eu não sou só um soldadinho de chumbo. Eu amo.
É, ele estava certo. Não tardou para o baú ser aberto. Avistou com olhos brilhando aqueles cabelos caindo sobre o rosto, e aquelas besteiras ditas e ridas. Era ela, e ele sabia. Era ele, e ela sabia.
Trocaram os mesmos toques, as mesmas feições. As frases piegas não foram deixadas de lado. Ele cantou por um tempo, arrancou-lhe uma risada dessas de longos minutos. Tudo voltou ao normal e ele já imaginava os próximos dias, o sol nascendo, os beijos pelas tardes, e noites, e madrugadas, e o baú se fechou mais uma vez.
Aquela imaginação, a ilusão e as esperas foram trancadas naquele maldito baú velho e cor-de-rosa. Restou-lhe mais uma lágrima que não ecoava naquele silêncio. Ele sabia, ela tinha tantos brinquedos. Todos do mundo inteiro.
Uns tinham mais cor, mais charme, outros, ainda, ficavam logo ali naquela prateleira bem mais perto da cama do que ele. A culpa é do baú, quem mandou ficar tão longe?
Acostumou-se a viver entre as bonecas, a escuridão e as lagrimas. Não deixou de sorrir. Ela sempre voltava e botava naquele rosto cansado de brinquedo velho todos os sorrisos que poderiam existir. Ela sabia resgatar o amor do soldadinho de chumbo, por mais que ele jurasse de pés juntos, todas as noites, que se esconderia assim que uma luz viesse lá de cima. Ele fugiria, não deixaria rastro nem pistas. Nem ao menos desarrumaria o baú. Sairia assim que a lua tomasse o centro do céu e nunca mais dormiria entre lágrimas.
Ele não era só um soldadinho de chumbo. Ele amava, e todo bonequinho que ama, ainda que seja de chumbo, escreve poesias entre melancolias e sorrisos. Todo bonequinho que ama, cala ao entrar na grande caixa cor-de-menina, e toca-lhe os lábios ao sair.
Para ele era amor, não havia de ser outra coisa senão amor. Mas ele, ah...ele era apenas mais um soldadinho de chumbo jogado no fundo do baú.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Filantropia

por Keissy Carvelli

Ela tentou aceitar os fatos com um sorriso amarelo no rosto pálido e frio. O esforço só dissipou mais seus descansos, e o sorriso, não, ele não era amarelo. Antes fosse, soaria menos doloroso, menos piedoso e, quem sabe, despertaria um tom frígido de sarcasmo e ironia que ela tanto costumava jogar em suas frases soltas.
O sorriso não era inteiro, nem pela metade; era desses risos em pedaços, em frangalhos, de canto de boca sem mostrar os dentes, sem mostrar o sorriso. Ela era vulnerável, e sabia disso. Ela confiava de mais, e sabia disso. Ora, sua mãe passara a vida toda lhe dizendo: menina, você acredita muito nas pessoas, o mundo não é como você pensa.
Mãe, eu sei, eu sempre soube, mas não posso não saber, entende? Preciso acreditar, e não há outra coisa que eu possa fazer a não ser crer naquilo que me dizem. E, às vezes, nem é preciso dizer.
Ela tentou se projetar com seus 25 anos, talvez. Não demora tanto assim, é certo, porém até lá os dias são longos, e as escritas vazias e tão cheias dela mesma. Não obteve qualquer imagem sofisticada de roupas caras e emprego sofisticado. Ou teve. Mas como separar o seu imaginário real das suas expectativas platônicas?
Lembrou-se do professor de filosofia deixando escapar sutilmente que o tal Platão era um quase babaca, e que, bom mesmo, era Aristóteles. Qual é a desse cara que fica idealizando as coisas? É, Platão, deixar a caverna e as sombras para trás vai além de um simples conto. Talvez nós, eu e você, pudéssemos nos conhecer por aí, e idealizaríamos nossas paixões e por fim casaríamos. Não seria má idéia, não fosse por um fator ou outro.
Tentou aceitar o fato de que não há razão alguma, e interiorizou a vontade de não afear seus dias. Santa impaciência. Era isso, exatamente isso: demonstrava paciência com seus novos amores pela sua própria impaciência. Quanto egoísmo, menina. Talvez isso não te leve ao céu. Talvez isso não te leve a lugar algum.
Ela era assim mesmo, e todos sabiam. Tinha lá seus encantos, mas de magia, pouco, bem pouco. Temia, ainda, repetir-se. Por Deus, como ela era repetitiva. Chorava as mesmas lágrimas, os mesmos motivos, os mesmos clichês; poetizava as mesmas palavras, as mesmas rimas, os mesmos pontos, as mesmas vírgulas, o mesmo enredo em voz distinta.
Olhou sua cama desarrumada, seu quarto estrategicamente desorganizado e imaginou algum conto sobre essa coisa toda de vida nova, e liberdade, e cigarros, e álcool...Lá estava ela se repetindo outra vez.
Achava um charme citar cigarros e álcool em poesias e prosas. Achava um charme entrar madrugada a fora expondo em papel suas repetições infantis. Achava ainda mais charmoso levar um gole de café à boca a cada pausa literária, no entanto detestava café. È, ela não era tão charmosa quanto pretendia.
Ah, Platão, se eu te conhecesse. Passaríamos noites e noites mudando o mundo com os pensamentos enquanto os pés deixariam marcas no chão de terra batida.
Ela queria ser um pouco de Aristóteles, ela queria, mesmo! Talvez já esteja dando indícios e progressos para tal, ela sabe. Mas falta-lhe paciência, é o que dizem, e essa gente, sinceramente, diz de mais. Toda uma vida de paciência esperando pelo que “está por vir”, e nunca está, nunca é, nunca vem.
Menina, ouça o poeta: não há nada há ser esperado. Nem desesperado. Ouviu? Pois bem, agora durma, mas leia antes, isso te trará algumas idéias a mais.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Dois lados

por Keissy Carvelli

Esperei a noite cair, e o álcool entrar, e a melancolia sucumbir meus sentidos na tentativa de deixar as palavras escorrerem pelos dedos sem qualquer propósito, ou por algum, quem sabe.
Trocaria minha noite de sono pela distância em menor tamanho, e trocaria minha cama por um sorriso, por aquele sorriso. Ele seria pra mim, e meu, e soaria feito criança em dia de natal com olhos brilhando e mão trêmulas, e a pele ansiosa expondo aquelas expectativas.
Eu esperei por tanta coisa, por tantos anos e por fim continuo jogando minhas ilusões para o papel num começo de madrugada solitária e fria. Quisera eu ser fria o suficiente para não sentir, e não querer, não precisar. Quisera eu poder virar o pescoço e alcançar os teus olhos com os meus, logo ali, no mesmo lugar em que destruo minhas esperas.
Sou parasita de mim e dessas coisas todas que sinto, e , por vezes, gostaria de não ser exatamente como sou. Talvez eu fosse bem mais feliz.



domingo, 6 de abril de 2008

Do lado de fora

por Keissy Carvelli


Os pés descalços e sujos se arrastavam naquele chão frio daquela madrugada de tantas idas e vindas. O vento forte e ainda mais frio embaraçava os cabelos pretos jogados ao tempo como resquício do cansaço interior que sentia após tantos anos, tantos beijos, tantas palavras e histórias.
Não pude desvirtuar os pensamentos, tampouco as cenas que acabavam de acontecer. Aquela conversa precedida das mãos, e dos olhos fechados, e daquela vontade gritando em silêncio coisas que nós não queríamos ouvir, titubeava pela minha cabeça sem indícios de encontrar alguma solução ou explicação.
A maquiagem borrada enfeitava os olhos baixos e sonolentos que não procuravam nada por aquelas ruas longas e distantes de qualquer lugar. Estava longe de mais para me arriscar, mas perto o suficiente para não esquecer.
Aquela história toda de medo e subterfúgios não poderia me convencer a não esperar, não querer decifrar os reflexos dos espelhos postos em quartos distintos. Eu não deveria aceitar, mas há uma fresta de impotência corroendo minhas mãos.
Abri a porta num ruído discreto e logo pude aquecer meus pés com o carpete empoeirado da sala de estar e, num suspiro leve, retomei a consciência do que acabava de acontecer. Era eu, mais uma vez, o certo pelo errado. Era eu, mais uma vez, agora pelo inverso.
O cheiro de cigarro misturado ao álcool se alastrava por toda a minha pele, e aquela marca no braço esquerdo, aquele fim sem começo, aquele sorriso conformado saindo do meu rosto enchiam o meu apartamento de crimes e suspeitas.
Joguei meu corpo fraco na água quente do chuveiro lavando primeiramente os pés de quem dança, e anda e não chega a lugar algum. Esfreguei cada pedaço de pele na tentativa de tirar o perfume que ficaria preso em mim, no meu lençol, e no meu cobertor durante todos os meus sonhos. Prendi os fios que caíam sobre a boca tentando prever qualquer pretensão, qualquer senão.
O sol já começava a aparecer pelo vão da janela, os sinos da igreja lá do ouro lado acertavam a hora. Que horas são? Não, não queria pensar no tempo.
Troquei os pensamentos pela cama, cobertor, travesseiro e um pequeno fluxo de imagens de um passado recente que se dissipava no ar como aquele perfume que, em vão, tentei não lembrar.