sábado, 14 de fevereiro de 2009

Conto como verso

por Keissy Carvelli

Os meus discos não te impressionam. Meus livros você tira da estante, joga num canto, para colocar todos os novos no lugar. Os teus. Meus contos não estão mais nas tuas leituras diárias, nem meu rosto no teus pensamentos diários, nem minha carta escrita em letras pequenas está presa no teu diários. Minhas frases não estão soltas em teu vocabulário, nem meu olhos presos no teu sorriso.
Vou brincar com esses teus dias tão longes de mim, e queimar meus livros. Vou riscar meus discos, e onde mais você estiver. Vou trocar o lençol para não sentir teu perfume, vou virar cinco, seis, sete doses de qualquer coisa para não sonhar com teu abraço, com teus passos meio andados meio pulados. Vou inventar piada, escrever sobre o céu, a fome, a falta de ar para não te colocar em poesia; vou esquecer os tons para não cantar teu nome.
Os meus discos não te impressionam. Meus livros transpiram paixões e lirismos, esses mesmos livros jogados num canto, dando lugar aos seus. Meus contos são assim, sem enredo, sem desfecho. Minhas frases são silêncios intensos de coisa qualquer.
Eu vou gravar nos meus discos as canções que eu fiz pra lembrar dos nossos dias. Eu vou brincar com os teus dias e colocar todos eles junto dos meus; eu vou rabiscar nos teus livros poemas inteiros e versos só teus.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Vitrola de menina

por Keissy Carvelli

Não era nem nove da manhã e já acordava com um cigarro em mãos contrariando suas próprias regras. Abriu uma pequena fresta na janela escura deixando o sol quente incomodar os olhos claros e inchados de tanta lágrima da noite passada.
No chão algumas folhas escritas e amassadas explicavam uma parte do que era sentido por dentro. Cartas não escritas, tentativas infundadas de uma cama vazia, versos exagerados de mãos trêmulas e papel molhado.
A agulha da vitrola recém comprada tocava um rock desses solitários. Era blues, jazz, rock, tanto faz. Era Break On Through; era The Doors; era ela, Alice.
Checou a correspondência, a secretária eletrônica, os e-mails, as mensagens. Nada. Ameaçou discar aqueles números no telefone ao lado, mas desistiu antes mesmo de chorar. E foi assim que voltou a cair na cama, aos prantos. Um choro de criança, ainda que silencioso. Lágrimas que caiam por dentro, lágrimas que caiam só, num dia quente de verão.
A música ainda soava alta. Cada solo de guitarra parecia entrar em compasso com os soluções de Alice. Quase três minutos sofridos após um ano.
Lembrava dos planos para o mês seguinte, o final do ano, o final de semana. O presente escolhido com cuidado mantinha-se em cima da mala desordenada com o mesmo zelo de quando fora pensado. Alice sabia que ela abriria um largo e doce sorriso diante da caixa colorida. Alice não esqueceria esse sorriso e abriria um também para que se completassem como nos filmes.
Perguntava agora, de olhos abertos, qual era o plano. O carnaval da semana seguinte, a próxima cerveja no bar da faculdade; o próximo conto escrito, o livro comprado. Perguntava Alice qual plano lhe restava. A próxima música do disco?
A agulha arranhou de leve o vinil mudando o ritmo da canção. Alice temeu ser a última do lado a. Era. The End, Ther Doors, onze minutos de um ano inteiro, de um amor inteiro. Era ela, Alice. Eram elas. Era ela sem Alice, era Alice sem ela.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Uma dessas partidas

por Keissy Carvelli

Segunda-feira, cinco horas. O céu ainda tão escuro e o velho rádio relógio já desperta com alguma música tão velha quanto o objeto, tão cansada quanto aquela rotina.
Faz café, mas não faz barulho; come o pão com manteiga, o café com leite, os olhos com sono acostumados a acordar antes mesmo do sol. É tão cedo, tão cedo. Já é tarde, o relógio sempre adiantado não falha. Nos ombros a bolsa pesada, nos braços as pastas, papéis, o fardo.
Pega ônibus, lotado, já são seis, já são anos assim. Quarenta, cinquenta, sessenta minutos, cinquenta e uma rugas, quatorze horas de trabalho, dezoito em pé. A mesma roupa, a comida longe de casa, as pernas inchadas, o sorriso rosto.
Terça, quarta e o resto da semana assim. Às dez e meia passadas do meio dia toca a campainha. Casa. O marido dorme, o filho não responde, nem oi, nem olha; a filha longe, às vezes ao telefone. Não reza, os olhos carem antes mesmo do primeiro verso, do último 'amém'. A tv desligada, o corpo coberto, o velho rádio relógio contando o tempo para logo despertar mais uma vez.
Sábado e domingo não tem cinema, restaurantes, nem passeio no parque não. Sessenta minutos do mesmo ônibus, seis horas de outro trabalho, almoço com a família e o resto com olhos apagados e tv ligada.
Cinquenta e um anos, oitenta e quatro horas por semana, dois filhos, setenta funcionários, mil e qquatrocentos alunos, dois mil e quinhentos reais por mês.