quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Amém

por Keissy Carvelli

Já era por volta das 22:30 de uma terça-feira não muito quente, contrariando o verão típico de janeiro. Encontrava-me numa dessas cadeiras azuis, ou cinzas, cuja função é singularmente caracterizar uma rodoviária. As cadeiras são, de fato, a alma deste lugar dos vai e vens.
Meus olhos e meu aspecto cadavérico deixavam explícito o excesso de sono, e as doze longas horas de viagem até aquele familiar lugar. Todavia, tal fisionomia não foi capaz de espantar um desses bêbados que sempre aparecem quando você está cansada, com fome, sem paciência e na rodoviária.
Num súbto momento contou sua história e logo me pediu algum trocado qualquer, não sei ao certo se os fatos ditos eram verdadeiros ou não e, pra mim, pouco importava sua veracidade. O que eu via naquele homem surrado, sujo da vida, era um pouco mais.
Tirei do bolso e entreguei ao homem míseros cinquenta centavos que, numa tarde de domingo, comprariam alguns chicletes, ou completaria o dinheiro da minha cerveja e nada mais. Talvez ele tenha trocado o dinheiro por uma dose de pinga, de esquecimento; talvez ele tenha jogado no balcão encardido de um boteco aquela moeda fria num gesto de "foda-se" o que é o mundo; ou talvez ele tenha comprado a passagem que outrora me disse precisar. Não sei, e não preciso saber.
Voltando ao ato de uma cretina solidaridade. Entreguei a moeda ao homem das roupas de trapo e pés descalços e logo senti, numa hipocrisia medíocre, como se tivesse mudando o mundo. Os olhos pequenos daquele homem quase não pode crer em tal ato e, em transe, pôs-se a falar sobre Deus. Tagarelou por alguns minutos enquanto eu suplicava em silêncio sua retirada dali.
Não sentia medo, não. Não havia motivo. Eu sentia vergonha. Vergonha de estar ouvido o quanto eu era abençoada por Deus só por ter cedido ao rapaz míseros cinquenta centavos. Ele soltava palavras como "bríbria", Deus, benção e destinava todas a mim; colocou-me num santuário por rídiculos cinquenta centavos.
Talvez aquela moeda tenha sido a última dose da noite, ou o ínicio de uma série delas desencadeando sofrimentos alcóolicos, ou coisa que o valha.
O miserável de tudo é que fui abençoada pelo resto da minha vida pelos estúpidos cinquenta centavos. Estúpida moeda, amém.

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